quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Sentenças pelo Brasil.



Depois de postar uma sentença deplorável, posto agora uma sentença louvável

Já no primeiro ano da faculdade de direito conhecemos a dificuldade que pessoas de baixa escolaridade têm em entender o vocabulário utilizado em peças jurídicas. Essa dificuldade distancia a Justiça de grande parte do povo, que é o seu destinatário. Este juiz, mostrando vivacidade e criatividade, produz uma sentença que não só permite que a parte de baixa escolaridade a entenda, mas que protege a parte mais fraca da relação jurídica, que poderia ser facilmente derrotada pelo time de empresas poderosas. Eis a sentença:

Processo Número: 0737/05 Quem pede: José de Gregório Pinto Contra
quem: Lojas Insinuante Ltda, Siemens Indústria Eletrônica S.A e
Starcell

Ementa: UTILIZAÇÃO ADEQUADA DE APARELHO CELULAR. DEFEITO.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO FABRICANTE E DO FORNECEDOR .

Sentença:

Vou direto ao assunto.

O marceneiro José de Gregório Pinto, certamente pensando em
facilitar o contato com sua clientela, rendeu-se à propaganda da
Loja Insinuante de Coité e comprou um telefone celular, em 19 de
abril de 2005, por suados cento e setenta e quatro reais.

Leigo no assunto, é certo que não fez opção por fabricante. Escolheu
pelo mais barato ou, quem sabe até, pelo mais bonitinho: o tal
Siemens A52. Uma beleza!

Com certeza foi difícil domar os dedos grossos e calejados de
marceneiro com a sensibilidade e recursos do seu Siemens A52, mas o
certo é que utilizou o aparelhinho até o mês de junho do corrente
ano e, possivelmente, contratou muitos serviços. Uma maravilha!

Para sua surpresa, diferente das boas ferramentas que utiliza em seu
ofício, em 21 de junho, o aparelho deixou de funcionar. Que
tristeza: seu novo instrumento de trabalho só durou dois meses. E
olha que foi adquirido legalmente nas Lojas Insinuante e fabricado
pela poderosa Siemens….. Não é coisa de segunda-mão, não!
Consertado, dias depois não prestou mais… Não se faz mais conserto
como antigamente!

Primeiro tentou fazer um acordo, mas não quiseram os contrários,
pedindo que o caso fosse ao Juiz de Direito. Caixinha de papelão na
mão, indicando que se tratava de um telefone celular, entrou seu
Gregório na sala de audiência e apresentou o aparelho ao Juiz:
novinho, novinho e não funciona. De fato, o Juiz observou o aparelho
e viu que não tinha um arranhão.

Seu José Gregório, marceneiro que é, fabrica e conserta de tudo que
é móvel. A Starcell, assistência técnica especializada e indicada
pela Insinuante, para surpresa sua, respondeu que o caso não era com
ela e que se tratava de "placa oxidada na região do teclado, próximo
ao conector de carga e microprocessador".

Seu Gregório: o que é isto? Quem garante? O próprio que diz o
defeito, diz que não tem conserto…. Para aumentar sua angústia, a
Siemens disse que seu caso não tinha solução neste Juizado por
motivo da "incompetência material absoluta do Juizado Especial
Cível - Necessidade de prova técnica."

Seu Gregório: o que é isto? Ou o telefone funciona ou não funciona!
Basta apertar o botão de ligar. Não acendeu, não funciona. Prá que
prova técnica melhor?

Disse mais a Siemens: "o vício causado por oxidação decorre do mau
uso do produto".

Seu Gregório: ora, o telefone é novinho e foi usado apenas para
falar. Para outros usos, tenho outras ferramentas. Como pode um
telefone comprado na Insinuante apresentar defeito sem solução
depois de dois meses de uso?

Certamente não foi usado material de primeira. Um artesão sabe bem
disso.

O que também não pode entender um marceneiro é como pode a Siemens
contratar um escritório de advocacia de São Paulo, por pouco
dinheiro não foi, para dizer ao Juiz do Juizado de Coité, no
interior da Bahia, que não vai pagar um telefone que custou cento e
setenta e quatro reais? É, quem pode, pode!

O advogado gastou dez folhas de papel de boa qualidade para que o
Juiz dissesse que o caso não era do Juizado ou que a culpa não era
de seu cliente! Botando tudo na conta, com certeza gastou muito mais
que cento e setenta e quatro para dizer que não pagava cento e
setenta e quatro reais! Que absurdo! A loja Insinuante, uma das
maiores e mais famosas da Bahia, também apresentou escrito de
advogado, gastando sete folhas de papel, dizendo que o caso não era
com ela por motivo de "legitimatio ad causam", também por motivo
do "vício redibitório e da ultrapassagem do lapso temporal de 30
dias" e que o pobre do seu Gregório não fez prova e então "allegatio
et non probatio quasi non allegatio".

E agora seu Gregório? Doutor Juiz, disse Seu Gregório, a minha prova
é o telefone que passo às suas mãos! Comprei, paguei, usei poucos
dias, está novinho e não funciona mais! Pode ligar o aparelho que
não acende nada! Aliás, Doutor, não quero mais saber de telefone
celular, quero apenas meu dinheiro de volta e pronto!

Diz a Lei que no Juizado não precisa advogado para causas como esta.
Não entende seu Gregório porque tanta confusão e tanto palavreado
difícil por causa de um celular de cento e setenta e quatro reais,
se às vezes a própria Insinuante faz propaganda do tipo: "leve dois
e pague um!" Não se importou muito seu Gregório com a situação: um
marceneiro não dá valor ao que não entende! Se não teve solução na
amizade, Justiça é para isso mesmo! Está certo Seu Gregório: O
Juizado Especial Cível serve exatamente para resolver problemas como
o seu. Não é o caso de prova técnica: o telefone foi apresentado
ainda na caixa, sem um pequeno arranhão e não funciona. Isto é o
bastante! Também não pode dizer que Seu Gregório não tomou a
providência correta, pois procurou a loja e encaminhou o telefone à
assistência técnica. Alegou e provou!

Além de tudo, não fizeram prova de que o telefone funciona ou de que
Seu Gregório tivesse usado o aparelho como ferramenta de sua
marcenaria. Se é feito para falar, tem que falar! Pois é Seu
Gregório, o senhor tem razão e a Justiça vai mandar, como de fato
está mandando, a Loja Insinuante lhe devolver o dinheiro com juros
legais e correção monetária, pois não cumpriu com sua obrigação de
bom vendedor. Também, Seu Gregório, para que o Senhor não se
desanime com as facilidades dos tempos modernos, continue falando
com seus clientes e porque sofreu tantos dissabores com seu celular,
a Justiça vai mandar, como de fato está mandando, que a fábrica
Siemens lhe entregue, no prazo de 10 dias, outro aparelho igualzinho
ao seu. Novo e funcionando! Se não cumprirem com a ordem do Juiz,
vão pagar uma multa de cem reais por dia! Por fim, Seu Gregório, a
Justiça vai dizer à assistência técnica, como de fato está dizendo,
que seu papel é consertar com competência os aparelhos que
apresentarem defeito e que, por enquanto, não lhe deve nada.

À Justiça ninguém vai pagar nada. Sua obrigação é fazer Justiça! A
Secretaria vai mandar uma cópia para todos. Como não temos Jornal
próprio para publicar, mande pelo correio ou por Oficial de Justiça.
Se alguém não ficou satisfeito e quiser recorrer, fique ciente que
agora a Justiça vai cobrar. Depois de tudo cumprido, pode a
Secretaria guardar bem guardado o processo!

Por último, Seu Gregório, os Doutores advogados vão dizer que o Juiz
decidiu "extra petita", quer dizer, mais do que o Senhor pediu e
também que a decisão não preenche os requisitos legais. Não se
incomode. Na verdade, para ser mais justa, deveria também condenar
na indenização pelo dano moral, quer dizer, a vergonha que o senhor
sentiu, e no lucro cessante, quer dizer, pagar o que o Senhor deixou
de ganhar. No mais, é uma sentença para ser lida e entendida por um
marceneiro..

Conceição do Coité, 21 de setembro de 2005

Gerivaldo Alves Neiva,

Juiz de Direito

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